segunda-feira, 20 de julho de 2020

Relações confinadas


Num momento particularmente difícil das nossas vidas há muitas (ler demasiadas) situações às quais nos temos que ajustar. O confinamento obrigou-nos a todos a lidar não só connosco próprios, mas também, de forma continuada e perpetuada com o nosso núcleo familiar. E não, ninguém estava preparado para isso.
A verdade é que as relações têm dinâmicas próprias, distintas entre si. Então vejamos: a mesma pessoa, dependendo do seu interlocutor também varia a sua postura e configuração em como se relaciona com os outros. Independentemente das opiniões sobre o certo e o errado, iremos considerar que errado é tudo o que nos prejudica e faz sofrer (ou aos que nos rodeiam) e que possa ser considerado tóxico. Na mesma linha de pensamento, correcto é tudo aquilo que não nos magoa e nem nos faz sentir bem, tanto quanto aos que nos são chegados. Posto isto, importa pensar que nós “somos nós e as nossas circunstâncias” e que, as decisões que tomamos na vida são o reflexo dessas circunstâncias. Pensamos a curto, médio e longo prazo. Temos uma margem de manobra. E agimos, uns mais outros menos, com base no que antecipamos e projectamos para a nossa vida. Conseguimos, através das rotinas multitarefas que impomos para o nosso quotidiano, não nos confrontar constantemente com as mesmas situações ou pessoas. No emprego por exemplo, se tivermos algo que nos aborreça, sabemos que no final do nosso horário de trabalho iremos para casa e isso vai-nos desfocar desse aborrecimento e por ventura, alimentar-nos emocionalmente de maneira a nos reequilibrar e ajudar a enfrentar o dia seguinte. Familiarmente passa-se algo semelhante, ou seja, ainda que haja um conflito, o facto de passadas umas horas sairmos daquele ambiente faz-nos desanuviar e relativizar o problema. Podemos considerar que termos vários ambientes é como termos vários balões de oxigénio, que nos permitem respirar, descentrar-nos e perspetivar de um outro angulo. É esta gestão que permite que nos sintamos preenchidos consoante as nossas necessidades habituais ou momentâneas. Isto numa situação dita normal, tendo em conta a anterior realidade que todos tínhamos.Mas isto ninguém esperava, este vírus que nos transformou a todos em “donos de casa desesperados”. E para além das sérias implicações e alterações financeiras e sociais, o impacto familiar foi brutal e veio testar a qualidade das relações. Percebemos que esta situação afecta de forma mais intensa umas famílias que outras, uns relacionamentos mais que outros.
Salvam-se os bons? Terminam os maus?
Não é assim tão taxativo. Tem sobretudo a ver com o revestimento de cada relação. E forma como esse revestimento encaixa nestas condições sui generis. Poderemos nós dizer que um casal que preza o seu espaço individual, que tem actividades separadas (um vai ao ginásio outro participa em teatro amador), ou gostam de passar algum tempo com os respectivos amigos, separadamente, seja um casal que tenha uma má relação ou que, como vimos, se prejudiquem, se façam sofrer ou aos que os rodeiam? Parece-nos que não. No entanto imaginar este casal em que os seus elementos são autónomos, e considerar que por terem uma relação equilibrada e saudável até ao confinamento então (como numa equação de causa-consequência), este não os abalou, não é correcto. Claro que a qualidade da relação importa e muito. Serem mais ou menos cúmplices. Serem mais ou menos amigos e unidos. Mas a verdade é que o tipo de dinâmica a que estavam habituados terá uma influência considerável na resposta a esta situação tão difícil como especial.
Outros factores a ter em conta são as personalidades de cada um e a capacidade de tolerância, resiliência e imaginação. Estes três ingredientes podem ser comparados a elásticos ou dito de outro modo, são a plasticidade que cada um de nós tem de se adaptar a novas situações. Personalidades agressivas, têm por base processos mentais altamente rígidos em que a dificuldade em aceitar um pensamento ou atitude distintos do que elas pretendem, promove um conflito interno, que por norma desemboca numa alteração de comportamento, isto é, num comportamento agressivo. É por isso que se pensarmos numa pessoa agressiva, que como sabemos tem altos handicaps ao nível da compreensão e tolerância, numa situação que exige um ajuste psicológico tão grande como esta do confinamento, não será difícil entender que se criam condições “bomba-relógio”, agudizados pela falta dos tais balões de oxigénio.
E por último, é não menos importante analisar o estado psicológico em que cada um de nós já se encontrava antes de aparecer este vírus que virou o mundo do avesso. Pessoas que estavam extremamente cansadas, deprimidas ou frustradas, estavam menos estáveis e consequentemente menos equilibradas. Uma vez mais a conjugação dos dados não se pode escamotear. A reação destas pessoas depende se ficaram em teletrabalho e tinham condições domésticas para isso (espaço suficiente em casa ou na divisão; partilha de casa com muitas ou poucas pessoas, sendo estas crianças ou não); se ficaram sem remuneração ou se continuaram a trabalhar e como encararam esta situação no caso da ultima hipótese.
Todas estas alterações ao que considerávamos ser a normalidade, têm exigido um esforço que nunca imaginámos vir a ser necessário. As relações e a qualidade das mesmas são e serão sempre o nosso porto de abrigo. São elas que nos suportam ou nos fragilizam, que nos acolhem ou nos debilitam. Tanto as relações com os outros como a que temos connosco próprios.

Sílvia Silva