quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Papel parental em perturbações do comportamento infantil

Papel parental em perturbações do comportamento infantil

As crianças e as tarefas - Revista De Mãe Para Mãe

Quando decidimos ser pais, imaginamos um mundo cor de rosa e/ou azul cheio de  fólhinhos e lacinhos. Imaginamos um futuro imediato, a curto prazo e não raras vezes  resolvemos protelar as decisões futuras e dizemos a nós próprios: cada coisa a seu  tempo. Não, não é descabido. Requer até alguma sensatez. Ainda assim, é importante  que tenhamos uma linha orientadora, não da pessoa que queremos que o nosso filho  seja, mas antes, do educador que pretendemos ser. Por isso, quando decidimos ter um  filho, devemos estar conscientes que ser pais não é só mudar fraldas, dar biberons e  comprar roupinhas. Os pais são antes de todas as tarefas, educadores. São a bussola  do novo ser. Todos somos feitos de uma parte inata (que nasce connosco) e de outra  adquirida (que nos é ensinada e/ou transmitida). Ambas se conjugam e interagem na  formação do caracter daquele bebé. Sabemos que não conseguimos alterar a  componente inata, é certo. Então, concentremo-nos na adquirida que é a que, enquanto  pais, nos responsabiliza. A formação das estruturas mentais, as suas ramificações e  consolidação das mesmas depende, sobretudo, da nossa interação com o outro.E aqui,  de uma forma geral está o cerne da questão: Lidar com a frustração. É ao lidar com a frustração que crescemos cognitivamente. O nosso cérebro ao ouvir  um não, busca alternativas (as tais ramificações). Quando concordamos sempre com a  pessoa, habituamos o seu cérebro a seguir uma linha que se vai enfatizando e cravando  como sendo a certa, de uma forma absoluta e inquestionável. Por outro lado, o não e o  aprender a esperar, promove no nosso cérebro a criação de opções. Dito de outra forma,  passamos a perceber que não é assim tão grave que a autoestrada por onde  costumamos ir para o nosso objectivo esteja daquela vez fechada, porque o NÃO fez nos descobrir outros caminhos, alguns mais longos, menos fáceis, mas igualmente  interessantes e superiormente enriquecedores a nível psicológico e consequentemente  de desenvolvimento pessoal com efeitos benéficos socialmente. O que nos distingue  das outras espécies é a nossa capacidade de pensar. Quando privados desse exercício,  por acreditarmos que o nosso primeiro pensamento é imediatamente correcto e válido,  ficamos desprovidos dessa nossa humanização, a tal que nos destingue dos animais, e  passamos tal como eles a reagir de forma agressiva quando, ao contrário do que fomos  acostumados, a vida não corre como previsto.  Lidar com a frustração prepara-nos para as intempéries, para as contrariedades. Então,  se sabemos que a vida é tudo menos uma linha recta, será justo enquanto pais  privarmos os nossos filhos de, por si, com a nossa supervisão, desbravarem caminhos  que os possam tornar pessoas mais capazes de viver em sociedade? 

Falemos então de tarefas domésticas. Porquê? Porque elas são uma excelente oficina  de caracter. Com elas as crianças trabalham o tal campo da frustração, bem como o 

respeito pelo trabalho do outro, a interação com o outro, a responsabilidade, a  autonomia, a assiduidade e a pontualidade. Pontualidade? Sim, por exemplo no  exercício de pôr a mesa. Trabalham ainda a nível corporal a motricidade fina e grossa,  a coordenação, e/ou a organização espacial. Mas para muitos pais torna-se difícil saber  que tipo de tarefas se deve atribuir dependendo das idades da criança. Grosso modo,  tudo aquilo que as crianças desarrumam e sujam, podem e devem arrumar e limpar.  Ainda assim seguem algumas dicas:  

Dos 2 aos 3 anos (sob supervisão de um adulto) 

Arrumar brinquedos e livros. 

Levar a roupa suja para a tulha. 

Alimentar os animais de estimação. 

Limpar o pó.  

Ajudar a limpar comida espalhada ou bebidas entornadas.  

Dos 4 aos 5 anos (sob supervisão de um adulto) 

Fazer a cama. 

Ajudar a pôr e a levantar a mesa.  

Ajudar a arrumar as compras de supermercado.  

Participar na preparação das refeições. 

Bem como todas as tarefas que já faziam. 

Dos 6 aos 8 anos (sob supervisão de um adulto) 

Ajudar a estender e apanhar roupa.  

Preparar pequeno almoço, o lanche e a lancheira para a escola. Arrumar a mochila e deitar fora os lixos e restos de comida. 

Passar a esfregona 

Arrumar a roupa depois de passada a ferro. 

Bem como todas as tarefas que já faziam 

Dos 9 aos 12 anos (sem a supervisão de adultos) 

Lavar louça.  

Estender e apanhar roupa.  

Aspirar. 

Limpar a casa de banho. 

Arrumar as compras de supermercado.  

Preparar refeições simples.  

Levar o lixo.  

Bem como todas as tarefas que já faziam.


Silvia Silva - Psicóloga Clinica 



quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Decisões

 


Saberemos o que é o melhor para nós? Escolhemos sempre o certo e o que nos faz bem? Devemos arrepender-nos caso tomemos decisões erradas? E o tempo? O tempo ajuda? Faz-nos crescer? Apaga ou diminui as dores da vida? Tantas questões que nos colocamos e que nem sempre conseguimos responder. Antes de tudo é importante que nos coloquemos questões, já é um bom princípio. Significa que nos pensamos e que nos queremos perceber. E esse trabalho interior é tão importante, muito provavelmente o mais importante do e no nosso desenvolvimento enquanto seres humanos. É essa procura individual e intrínseca que nos permite ser connosco e com os outros em termos relacionais. E eventualmente mudar quando consideramos que um comportamento habitual em nós, de forma padronizada tem um resultado diferente do desejado, ler pior. Somos o resultado da soma dos dias, das horas e dos minutos que vivemos e consequentemente dos acontecimentos que vivenciamos e dos quais tomamos conhecimento, sendo que os primeiros são mais impactantes no nosso processo individual por nos colocarem no papel principal e assim exigirem uma gestão, também ela mais impactante de nós próprios. Ainda assim, o que acontece aos outros não deixa de ser informação e, caso estejamos atentos, e tenhamos a “ferramenta empatia” disponível, pode servir-nos e muito para nos preparar para uma situação semelhante. Sabemos que não somos a mesma pessoa de há cinco, dez ou muito menos vinte anos atrás. Bem pensado nem sequer somos a mesma pessoa de há um ano ou um mês a esta parte. Então vejamos a questão do arrependimento. Quando tomamos uma decisão, tomamo-la sob as condições e informações de que dispomos no momento. Pode efectivamente ser mais ou menos reflectida, mas, se decidimos daquela maneira é porque considerámos no momento ser o melhor para nós. Se corre bem achamo-nos o máximo, se corre mal achamo-nos uns fracassados. O arrependimento é uma tentativa ilusória de voltar atrás no tempo e mudar o rumo das coisas, sendo que desta vez, já sabemos o que aconteceu a seguir a essa tomada de decisão. A questão é que no filme da vida não dá para fazer rewind. E por essa razão, é injusto que haja lugar a arrependimentos. Devemos sim substituir esse sentimento por aprendizagem. Devemos pegar nessa situação, revê-la e tentar perceber se realmente numa ocasião futura semelhante, uma decisão diferente possa ser melhor. É essa reflexão sobre nós e as nossas circunstâncias que nos faz aprender mais sobre o que somos, o que nos incomoda e os nossos propósitos. Diria com alguma convicção que quanto melhor nos conhecermos, melhores serão as chances de diminuir os arrependimentos sobre o rumo que tomamos para as nossas vidas. Uma vez num curso de desenvolvimento pessoal ouvi uma opinião que me marcou: quando compramos um telemóvel, primeiro pomo-lo a trabalhar e só se alguma coisa não funcionar, ou se não conseguirmos fazer o que desejamos mesmo tentando várias vezes é que vamos ao último recurso que é ler as instruções. Infeliz ou felizmente fazemos o mesmo com as nossas vidas, só se alguma coisa não funcionar ou se não conseguirmos fazer o que desejamos, mesmo tentando várias vezes, é que vamos ao nosso ultimo recurso que é ler as instruções, ou seja, reflectirmo-nos ou melhor ainda, fazermos um trabalho de desenvolvimento pessoal que nos permita, antes que a vida aconteça, nos conhecermos e nos anteciparmos aos acontecimentos. O tempo por si só não nos muda. Apazigua as dores, mas não nos muda enquanto pessoas na nossa personalidade. O que muda é o que fazemos de nós durante esse tempo. E isso não é fácil. Nada fácil. Olharmos para dentro de nós obriga muitas vezes a que nos esventremos, a que vejamos coisas feias e a que tenhamos que admitir que o erro não é só do outro. É muitas vezes o que permitimos que o outro faça connosco. A maneira como nos tratam e como permitimos que nos tratem diz de nós aquilo que pensamos da nossa pessoa e a auto estima que temos. Importa muito, importa tudo que saibamos o que nos magoa e porque nos magoa, e o que nos agrada e porque nos agrada. Que sejamos conhecedores da nossa forma de funcionar e de processar os acontecimentos e os sentimentos. Só assim poderemos estar atentos aos sinais da vida. E por sinais falamos do desconforto que algumas pessoas nos fazem sentir na sua presença; do facto de não nos vermos reconhecidos ou realmente amados por quem nos esforçamos; por mesmo ouvindo um aparente elogio, pressentirmos que a forma como nos é dito não é autêntica e nos deixar angustiados. Sempre que nos sentimos cansados, chateados, traídos, não desejados ou incomodados nas nossas relações, devemos olhar para estes sinais. Olhá-los e perceber o que causou este efeito, o que essas pessoas significam para nós e porque é que, psicossintomaticamente o nosso organismo está a reagir desta forma. Quando fazemos esta pesquisa interior e quando humildemente tentamos descolar-nos da postura do “sei tudo sobre mim e estou preparado para tudo nesta vida” e admitimos que podemos saber mais sobre nós e nos podemos preparar mais e melhor para o futuro, conseguimos melhorar-nos enquanto seres humanos. Quando para além disso nos conseguimos colocar no lugar do outro de forma empática, não necessariamente para desculpar o que o outro faz, mas sim para entender porque o faz, por vezes acabamos por perceber que fomos nós que lhe demos a indicação e a permissão para nos tratar menos bem. E isso acontece sempre que mesmo atentos aos tais sinais, ainda assim não dizemos nada e por vezes ainda acatamos e sorrimos. Acontece quando alimentamos essas relações, ou quando permitimos que essas pessoas se mantenham nas nossas vidas por não querermos dizer NÃO. Costumo pensar que sempre que me contrario para não magoar outra pessoa, para além de me estar a contrariar a mim, não estou a ser genuína, e consequentemente estou a dar indicações de que a outra parte pode continuar a agir da tal forma que me deixou desconfortável. E essa não é uma boa decisão. Mais do que pensarmos nas grandes decisões que tomámos na nossa vida e que ainda teremos que tomar, pensemos nas mais pequeninas, as de todos os dias. Naquelas que nos fazem estar apenas com quem gostamos de estar e que nos permitem fazer apenas o que queremos fazer. Para tudo o resto há que ter a humildade de estar atento aos sinais, de perceber o que nos faz sentir bem ou mal e neste último caso dizer NÃO, “porque não é isto que quero para a minha vida”.

Psicologa clínica

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Relações confinadas


Num momento particularmente difícil das nossas vidas há muitas (ler demasiadas) situações às quais nos temos que ajustar. O confinamento obrigou-nos a todos a lidar não só connosco próprios, mas também, de forma continuada e perpetuada com o nosso núcleo familiar. E não, ninguém estava preparado para isso.
A verdade é que as relações têm dinâmicas próprias, distintas entre si. Então vejamos: a mesma pessoa, dependendo do seu interlocutor também varia a sua postura e configuração em como se relaciona com os outros. Independentemente das opiniões sobre o certo e o errado, iremos considerar que errado é tudo o que nos prejudica e faz sofrer (ou aos que nos rodeiam) e que possa ser considerado tóxico. Na mesma linha de pensamento, correcto é tudo aquilo que não nos magoa e nem nos faz sentir bem, tanto quanto aos que nos são chegados. Posto isto, importa pensar que nós “somos nós e as nossas circunstâncias” e que, as decisões que tomamos na vida são o reflexo dessas circunstâncias. Pensamos a curto, médio e longo prazo. Temos uma margem de manobra. E agimos, uns mais outros menos, com base no que antecipamos e projectamos para a nossa vida. Conseguimos, através das rotinas multitarefas que impomos para o nosso quotidiano, não nos confrontar constantemente com as mesmas situações ou pessoas. No emprego por exemplo, se tivermos algo que nos aborreça, sabemos que no final do nosso horário de trabalho iremos para casa e isso vai-nos desfocar desse aborrecimento e por ventura, alimentar-nos emocionalmente de maneira a nos reequilibrar e ajudar a enfrentar o dia seguinte. Familiarmente passa-se algo semelhante, ou seja, ainda que haja um conflito, o facto de passadas umas horas sairmos daquele ambiente faz-nos desanuviar e relativizar o problema. Podemos considerar que termos vários ambientes é como termos vários balões de oxigénio, que nos permitem respirar, descentrar-nos e perspetivar de um outro angulo. É esta gestão que permite que nos sintamos preenchidos consoante as nossas necessidades habituais ou momentâneas. Isto numa situação dita normal, tendo em conta a anterior realidade que todos tínhamos.Mas isto ninguém esperava, este vírus que nos transformou a todos em “donos de casa desesperados”. E para além das sérias implicações e alterações financeiras e sociais, o impacto familiar foi brutal e veio testar a qualidade das relações. Percebemos que esta situação afecta de forma mais intensa umas famílias que outras, uns relacionamentos mais que outros.
Salvam-se os bons? Terminam os maus?
Não é assim tão taxativo. Tem sobretudo a ver com o revestimento de cada relação. E forma como esse revestimento encaixa nestas condições sui generis. Poderemos nós dizer que um casal que preza o seu espaço individual, que tem actividades separadas (um vai ao ginásio outro participa em teatro amador), ou gostam de passar algum tempo com os respectivos amigos, separadamente, seja um casal que tenha uma má relação ou que, como vimos, se prejudiquem, se façam sofrer ou aos que os rodeiam? Parece-nos que não. No entanto imaginar este casal em que os seus elementos são autónomos, e considerar que por terem uma relação equilibrada e saudável até ao confinamento então (como numa equação de causa-consequência), este não os abalou, não é correcto. Claro que a qualidade da relação importa e muito. Serem mais ou menos cúmplices. Serem mais ou menos amigos e unidos. Mas a verdade é que o tipo de dinâmica a que estavam habituados terá uma influência considerável na resposta a esta situação tão difícil como especial.
Outros factores a ter em conta são as personalidades de cada um e a capacidade de tolerância, resiliência e imaginação. Estes três ingredientes podem ser comparados a elásticos ou dito de outro modo, são a plasticidade que cada um de nós tem de se adaptar a novas situações. Personalidades agressivas, têm por base processos mentais altamente rígidos em que a dificuldade em aceitar um pensamento ou atitude distintos do que elas pretendem, promove um conflito interno, que por norma desemboca numa alteração de comportamento, isto é, num comportamento agressivo. É por isso que se pensarmos numa pessoa agressiva, que como sabemos tem altos handicaps ao nível da compreensão e tolerância, numa situação que exige um ajuste psicológico tão grande como esta do confinamento, não será difícil entender que se criam condições “bomba-relógio”, agudizados pela falta dos tais balões de oxigénio.
E por último, é não menos importante analisar o estado psicológico em que cada um de nós já se encontrava antes de aparecer este vírus que virou o mundo do avesso. Pessoas que estavam extremamente cansadas, deprimidas ou frustradas, estavam menos estáveis e consequentemente menos equilibradas. Uma vez mais a conjugação dos dados não se pode escamotear. A reação destas pessoas depende se ficaram em teletrabalho e tinham condições domésticas para isso (espaço suficiente em casa ou na divisão; partilha de casa com muitas ou poucas pessoas, sendo estas crianças ou não); se ficaram sem remuneração ou se continuaram a trabalhar e como encararam esta situação no caso da ultima hipótese.
Todas estas alterações ao que considerávamos ser a normalidade, têm exigido um esforço que nunca imaginámos vir a ser necessário. As relações e a qualidade das mesmas são e serão sempre o nosso porto de abrigo. São elas que nos suportam ou nos fragilizam, que nos acolhem ou nos debilitam. Tanto as relações com os outros como a que temos connosco próprios.

Sílvia Silva

segunda-feira, 2 de março de 2020

Para quando ginásios mentais


Nunca houve tanta preocupação com a saúde como nos dias de hoje. Nutricionistas que aconselham dietas do paleolítico, jejuns intermitentes ou retirada de carnes vermelhas e de hidratos de carbono.  Consequentemente os ginásios multiplicam-se e estão sempre cheios.
O que faz as pessoas irem ao ginásio é muito mais que exclusivamente a sua condição física. Escolhe-se o ginásio pelos mais diversos factores: porque o ginásio tem melhores condições; porque se destina a uma elite correspondente à imagem que se quer fazer passar; pelas pessoas que sabemos que o frequentam, principalmente se forem nossos amigos, ou então se desejarmos que venham a sê-lo. Mas acredito que, a par da preocupação pela saúde física, há também o desejo de socializar num ambiente descontraído em que à partida todos se identifiquem com o mesmo objectivo que é o de estarem em forma. Até aqui é possível apontar os benefícios de ir ao ginásio que, além dos físicos, são também sociais e até psicológicos. Mas é preciso muito mais relativamente a este último aspecto. É preciso que nos trabalhemos psicologicamente. Que nos gimnastiquemos mentalmente. Até porque, como tão bem sabemos, a saúde física e a psicológica estão tão interligadas, estão tão entranhadas que é impossível estar-se bem numa das áreas da saúde se não estivermos bem na outra. Sabemos também que por exemplo a obesidade, que tanto se tenta combater nos ginásios, afecta tanto ou mais a nossa saúde psicológica como a física, e que quase sempre só se inicia o processo de cura quando há também tratamento emocional/psicológico.
O que nos leva à questão essencial: “porque não ginásios mentais?” Ou reformulando: “para quando ginásios mentais?”
 É urgente que se comece a praticar ginástica mental!! O sedentarismo não diz respeito apenas a ficar sentado num sofá. Quase sempre traz com ele a inercia de não se pôr a cabeça a pensar. Lêr um livro, jogar um jogo de tabuleiro, fazer palavras cruzadas ou jogar às cartas parece coisa do seculo passado, literalmente. No entanto, é este tipo de exercícios, entre outros, que impede que surjam dificuldades, ou num estágio mais elevado: perturbações a nível cognitivo. Há doenças inevitáveis, sim. Sabemos que indivíduos que sempre tiveram modos de vida extremamente saudáveis não ficam cem por cento imunes a ficarem doentes. Mas o que é certo é que estatisticamente isso é muito menos provável. Tal como os restantes músculos do corpo que precisam de ser estimulados e trabalhados para potenciarem as suas funções, também o cérebro precisa de ser estimulado e trabalhado para que não se deem atrofios, ou pior: inactividade e perda neuronal. Então vejamos, existem determinados exercícios aparentemente muito simples que estimulam áreas especificas do cérebro: fazer contas ou escrever com caneta e papel são apenas dois pequenos exemplos. Tão simples e importantes para a estimulação do nosso musculo mental, como raros nos dias de hoje. O excesso de informação cansa e diminui a nossa capacidade de concentração e faz com que ao fim de duas linhas de um texto no computador ou telemóvel, desviemos a nossa atenção e demos por concluída a tarefa. O facilitismo da informação toda concentrada num só “lugar virtual” impede-nos de ir à procura em espaços físicos como pesquisar numa biblioteca. Trabalhamos por isso muito menos a nossa capacidade de reflexão, de seleção e de tolerância à frustração, bem como acabamos por nos impedir de descobrir outras coisas paralelas ao nosso objectivo, o que aconteceria se fizéssemos um trabalho não exclusivamente online.
O sedentarismo físico, o mental, a má qualidade da alimentação e o stress são algumas das razões que levam não só à não activação do cérebro de uma forma saudável, mas também propiciam a possibilidade de morte neuronal. Não só de uma forma naturalmente progressiva, mas porque estas mesmas razões potenciam doenças físicas, tais como hipertensão e aumento de risco de acidentes vasculares cerebrais que terão consequências, obrigatoriamente negativas, no saudável funcionamento do nosso cérebro. Então para que serviria um ginásio mental? Como qualquer outro “ginásio físico”, serviria para avaliar o individuo nas suas potencialidades e maiores dificuldades nas mais diversas áreas: memória; atenção; linguagem; percepção ou funções executivas, e através desse diagnóstico prevenir situações de dificuldade ou perturbação cognitiva. Em situações mais graves, trabalharia o individuo de uma forma mais especifica, tal como se faz em situação de personal trainer, no sentido de o estimular e fazer regredir a sua dificuldade. Este treino, tal como o físico, não deve ser adiado. Quanto mais tarde o fizermos, mais nos sujeitamos a perder funções de forma definitiva, ou pelo menos de muito difícil recuperação. Quando se fala de estimulação cognitiva, a maior parte das pessoas associa este tipo de “treino” aos idosos. Façamos então uma pequena reflexão: “Quantas vezes alguém o cumprimentou, sabe que conhece a pessoa mas não se lembra de onde a conhece, ou não se lembra do nome dela, ou não se lembra de ambas? A partir de que idade sentiu necessidade de apontar numa agenda física ou pôr lembretes no telemóvel, porque percebeu que alguns detalhes lhe começavam a escapar? Quantas vezes teve que fazer refresh na sua cabeça de um compromisso importante para não correr o risco de se esquecer? Sabe de cor os números de telefone/telemóvel das três primeiras pessoas a quem ligaria em caso de urgência? “ Depois deste pequeno exercício, acha ou não que seria importante exercitar-se, não só física, mas também psicologicamente?
Sabe-se hoje que não há uma idade limite para nascerem novos neurónios. Mas é essencial que trabalhemos a plasticidade neuronal de modo a permitirmos que esse nascimento aconteça.

"Memories" - Jornal de Notícias